RECORTE SALVADOR :: 05_EMARANHADO

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

ANÁLISE VERTICAL


A arte de espalhar...afeto.


O afeto relacionado corresponde ao calor da vizinhança, do poder com que as relações humanas fazem com que as raízes pessoais se finquem em determinados lugares, às vezes, maiores do que as qualidades/características físicas.
Espalhar esse sentimento, transplantar relações interpessoais, ou qualquer movimento relacionado, não se configura como uma maneira coerente. Basear-se e tentar equiparar, evocando também afeto semelhante, mostra-se mais seguro e viável, diante das inúmeras barreiras que encontrar-se-iam pensando friamente em "espalhar o afeto".
Derrubada essa idéia complicada de espalhar um sentimento tão peculiar (visto que conceitos de apego variam de intensidade, grau etc., a depender dos pólos que se comunicam), emergiu a vontade da evocação de sentimentos parecidos – símbolos, sensações, devaneios, metáforas, identidades – para tentar quebrar e misturar as relações humanas e espaciais de forma mais satisfatória.
A partir disso, a relação com a cultura baiana é rápida. Tratar de simbologias e identidades para evocar sentimentos e afeto – não só humano – é complicado, e pode ser rápida também a autofagia conceitual, devido ao quão não rasos são os conceitos de regionalismo, tradição, identidade...cultura. A nossa "tão peculiar" cultura, talvez capaz de evocar tais manifestações pessoais, pode ser vista também com um olhar mais apurado: é uma cultura criativa, múltipla, não uma identidade cultural.
A fuga do folclore, dos símbolos mais mastigados – por vezes forçadamente preparados em escala industrial - já é inerente ao nosso pensamento. Temos de lidar com os sinais que distinguem a identidade, que sejam universais e objetivos no que lhes é procurado: o afeto.
Engrossando mais os alicerces para tal fuga da "identidade" ou da "cultura regional" que evoquem o afeto, vale ressaltar que uma produção mimética não é bem-vinda, já que brinca com valores pessoais, com memória e afeto. O procurado é o trabalho não mimético, não literal, não simples como a baiana de acarajé, a capoeira, o candomblé, o berimbau etc., com identidade baiana evocativa de afeição.
O artista plástico Carlos Bastos disparou, certa vez: "não sou preto, nem branco: sou baiano". Essa idéia de Bahia (do ser baiano, da baianidade nagô, ou o que seja) é extremamente muito mais imaginada do que factível. Fatos são as demonstrações, alguns maneirismos e traços que são válidos nessa análise, mas não o perfil dengoso estereotipado que se formou e que é visto, por nós mesmos, como legalmente corriqueiro. O subir e descer das ladeiras, com a poética encrostada nas "cadeiras" das mulatas, cabe mais as imaginativas reações de Jorge Amado, do que a verdadeira, que se distingue por um simples fato: existem identidades, todas misturadas, aí sim em um balaio "genuinamente" baiano. Essa gracejada identidade baiana é muito mais um sentimento de diferença para com ao resto do país e do mundo, e seria, aí sim, muito fácil cair numa cilada ao se pensar urbanisticamente.
Afirmar que a cultura baiana existe com características próprias, originais e simples para assimilação não convence. A baianidade tem de vir complementada, abraçada com sua real densidade discursiva e objetiva, reiterada constantemente através de suas mutações. A "coisa" é muito mais ampla, e é devido a isso que distinguimos bem: usar de um paradigma para a representação estereotípica da "cultura baiana",para evocar afeição, deve ser evitada. O discurso estereotípico não será talhado, mas sim como esses estereótipos se combinam para construção de um pensamento plausível. Que a baianidade nagô, imaginada e magicamente transformada, fique no rejunte de metas governamentais e em guias de turismo.
Se o "buraco é mais embaixo", podemos levar como argamassa o que Norberg-Schulz diz: "para que uma pessoa possa habitar uma cidade, ela deve conseguir se orientar em um meio e se identificar com ele, ou mais simplesmente, desde que experimente a significação do meio". O comportamento que se deseja evocar é muito mais complexo, vale de identificação não específica, não "regional". Para que se possa criar experiências afetivas dos espaços e se identificar com a cidade, é preciso que seja capaz de introduzir em seus espaços com seu corpo e sentidos, e que esses lhes permitam que sua experiência espacial se concretize satisfatoriamente.
O espalhar com corpo e sentidos, misturar, agregar ou simplesmente formar elementos evocativos nos levaram a ter como sintetizador cultural o Tropicalismo, Hélio Oiticica e Hundertwasser.
O movimento tropicalista nos diz muito pelos seus elementos e produtos comportamentais. Baseado no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, que funde culturas para um novo produto artístico. Em anos, momentos e distâncias diferentes, porém se valendo de valores da cultura brasileira a inovações estéticas estrangeiras, tanto Oswald quanto Caetano e cia. tentavam se aproveitar dos elementos estrangeiros que entravam no país, digerindo-os com o dito "popular nacional". O tropicalismo era mais pop, não necessariamente popular, e nos é interessante pela busca em traduzir a complexidade fragmentária da nossa cultura. São os enlaces profundos que poderão ser chave do afeto a ser espalhado. Até a contemporaneidade, mesmo que superficialmente, traz o mais básico do conceito antropofágico. A axé music, esse "tchan" que se hibridiza com outas fontes e formas multimídias contemporâneas, com "identidades" prórpias e alheias, frutos da afimação de uma cultura afro-pop-brasileira. O tchan foi do Brasil, da Arábia e até do Hawaí...
Hélio Oiticica foi um dos expoentes e nomeador dos princípios que geraram o tropicalismo. Disse: "Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita européia e americana terá que ser absorvida, antropofagicamente (...), pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrida, vazia de um significado próprio". Oiticica nos impulsiona a trabalhar com o multi-sensorial, pois com essa brincadeira se concretiza uma vivência mais totalizada e participativa, que vai se constituindo nos usos que dela traz o espectador-participador. Pelo Parangolé (uma espécie de capa, que só se mostra ao ser vestida/manuseadda), vemos as asas e pelos Penetráveis vemos uma outra chave.
Nos Penetráveis, o espectador é o descobridor da obra, desvenda-o parte por parte, onde o vazio é aprendido e chega-se aí à plenitude da valorização de todos os cantos e recantos do penetrável. Ode a novas experiências do real, da habitação. Oiticica nos deixa com "Penetráveis" a possibilidade de se transpor uma experiência artística para o universo do cotidiano. Aproveitar a cultura popular, sem comprometimentos com estereótipos, como fonte de energia, de necessidade criativa, de evocação.
Do que nos entrelaçamos, retiramos um trecho do livro "Estética da Ginga", de Paola Jacques: " Os Parangolés já eram considerados como asas – talvez as asas de Ícaro – que Oiticica tinha criado para poder sair do labirinto, sair de seu próprio labirinto, como Dédalo. Mas os labirintos de Hélio Oiticica, ao contrário do de Dédalo, não são feitos para as pessoas neles se perderem, mas para ali se acharem, se encontrarem consigo mesmas e também com os outros. São espaços de convívio, espaço para viver. Ali o que primeiro se perde são os condicionamentos sociais, os preconceitos, as imagens estereotipadas. Perdemos ali o que nos prende(...)".
Hundertewasser tem a arte como elemento integrador, e levou à Aústria formas novas de resgate do ser humano e da sua essência criativa. O andar descalço, o colorir a quase-amorfia, enfim, buscar relações mais intensas, como a pele. Afinal, o que há de mais profundo? Deve-se buscar na pele, o corpo cuja relação com o mundo não é mais de conhecimento, mas de convivência. É um poder muito mais transmitido de indivíduo do que coletivamente.
Abraçando Hundertwasser, nos trouxe mais subsídios para evocar afeto através da identidade, não de uma já fornecida ou própria de convenções, mas da pessoal, que pode ser sintetizada no simples direito de ter sua janela decorada. Incita-nos: " A arquitetura termina quando o proprietário recebe a sua casa nova, quando era aí que devia começar."

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